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  • Foto do escritorCecilia Leite

Sombras


Hoje em dia o conceito de sombra, primeiramente introduzido por Jung, é bastante difundido. Muito se fala sobre o trabalho com as sombras, mas percebo que existe uma certa confusão acerca desse assunto.


Sombra é um termo que faz referência ao inconsciente individual, ou seja, ao conteúdo psíquico não reconhecido pelo indivíduo. Diz respeito às memórias, traumas, desejos, que não percebemos que carregamos, e que justamente por isso, podem interferir nas nossas escolhas e decisões sem que tenhamos a consciência de que isto está ocorrendo.


Se é sombra, está oculto, ou seja não vemos. Não reconhecemos em nós. Então o primeiro aspecto a se chamar a atenção, é que ela se manifesta sem que estejamos percebendo que ela está lá, ou seja, ninguém acha que está sendo comandado por algum aspecto sombrio. Isso é de extrema importância que seja entendido, pois vejo muita gente associar esse termo a alguma característica que se considera negativa na personalidade. Às vezes, escuto alguém colocar, equivocadamente, que está fazendo um trabalho com a sua própria sombra, referindo-se a um determinado comportamento, como por exemplo a agressividade. Se a pessoa reconhece em si essa característica, então ela não está mais na sombra, já veio para a consciência. Sombra é quando o indivíduo não reconhece em si um determinado comportamento, impulso, desejo, sentimento... E ele existe, e domina a cena.


Sombra não é sinônimo de coisa ruim. É o que está oculto. E pode inclusive ser um potencial de talento, de cura, uma força desconhecida. Mas o que acontece, é que o nosso conteúdo psíquico é povoado de medos, traumas, limites, que se não forem conhecidos e reconhecidos por nós, atrapalham a nossa vida. Tomamos atitudes, decisões, direcionamos a vida com base nessas forças que desconhecemos.


Exatamente como no aspecto físico, onde enxergamos a sombra de um objeto na projeção dele em uma superfície, as nossas sombras psíquicas também normalmente são projetadas em alguém. Ou seja, aquilo que não reconheço em mim, enxergo no outro. O que é difícil para eu aceitar aqui, consigo perceber mais facilmente ali. Em qualquer situação conflituosa, é muito mais fácil enxergar os medos e as defesas do outro, do que as nossas próprias. E assim seguimos, culpando o mundo pela nossa infelicidade.


Precisamos entender a vida como um espelho. Aquilo que nos cerca reflete para nós o tempo todo o nosso próprio conteúdo psíquico. Se uma determinada situação se manifesta em nossa vida, é porque ela está de alguma forma relacionada com aquilo que somos. E qualquer ocorrência, dessa forma, pode servir como uma oportunidade de aumentar a consciência de nós mesmos. Mas o que normalmente acontece, é que ao invés de virar os olhos para dentro, e perceber o que aqui fez com que as coisas saíssem dessa forma, acusamos o outro, apontando todas as suas falhas que levaram àquele acontecimento.


Mesmo as pessoas mais conscientes, que acham errado culpar e julgar o outro, frequentemente caem na armadilha de atribuir a uma interferência divina ou do destino, o fato de algo não dar certo. Não que isso não ocorra. Sim, frequentemente existe uma força maior que reconduz e redireciona os nossos caminhos, é verdade. Mas o fato aqui a considerar, é quando ocorre de antes de qualquer auto avaliação, já emite-se um parecer de que as coisas não saíram a contento porque fomos livrados de algum mal já que a outra parte é um problema, ou coisa parecida. Muitas vezes existe uma defesa mental, revestida de espiritualidade, que impede que enxerguemos a nossa participação naquele resultado. E com isso, perdemos a oportunidade de reconhecer em nós sentimentos ou comportamentos antes desconhecidos. Ao invés de jogar luz na nossa sombra, projetamos a escuridão no outro.


Quem está imbuído de um propósito de auto aprimoramento não deve fugir dessa confrontação com os fantasmas internos. Como o próprio Jung dizia: "Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta". É sempre em nós que está a chave para a solução de nossos próprios problemas. Examinar a raiz de nossas motivações pode ser surpreendente, se conseguirmos ser honestos o suficiente nesse processo. Podemos achar que estamos desenvolvendo um trabalho de luz, e acabar constatando que o que nos move é o medo, a culpa, a vaidade, a cobiça. Isso não desmerece o trabalho, mas amplia a nossa autopercepção, e permite que alcancemos um outro patamar evolutivo.


Reconhecer, integrar, redirecionar, utilizar o que existe de potencial. Conhecer as nossas sombras nos liberta da prisão em que elas nos colocam. Quando estamos inconscientes não temos escolhas, somos marionetes dos acontecimentos. Ao perceber as forças que nos governam ganhamos autonomia, e podemos utilizar o que considerávamos uma fraqueza como uma força. Aquilo que de alguma forma escondemos de nós mesmos nos domina. A sombra nos pressiona porque quer ser iluminada, então ao conhece-la, ganhamos poder sobre ela.


Quanto mais negamos, reprimimos, ou tememos um determinado comportamento em nós, mais ele nos será prejudicial. Nenhum aspecto nosso é ruim ou bom, ele simplesmente existe e precisa ser bem aproveitado. O impulso de fazer, por exemplo, se reprimido vira frustração, ou então agressividade. Se corretamente integrado, no entanto, torna-se coragem e pioneirismo. Enquanto não é reconhecido, é somente um potencial, para o bem ou para o mal. Para o bem, se não aproveitado, é um desperdício. Para o mal facilmente se torna destrutivo.


Existe um aspecto da sombra muito comum, que é se disfarçar de luz. E aqui, novamente ressalto que não se trata de bom e ruim, e sim de consciente e inconsciente. Isso acontece quando achamos que já entendemos um determinado assunto, temos um discurso pronto, bonito, como se toda a situação já estivesse muito resolvida para nós. Mas a vida mostra o contrário, e os problemas continuam insistentemente a aparecer. Novamente podemos cair na tentação de justificar isso externamente, ou podemos reavaliar a nossa posição.


Entender racionalmente é muito diferente de compreender ao nível da alma. Integrar esse conhecimento como parte inerente de nosso ser, é o que mostra que realmente aquele assunto está resolvido. Hoje em dia temos acesso a muita informação e os conceitos proliferam-se por aí. É fácil escutarmos uma coisa que faz sentido, começarmos a reproduzir esse discurso, sem no entanto termos vivenciado isso internamente. É a experiência que traz a sabedoria. Corremos o risco de esvaziar as palavras de seu conteúdo, repetindo conceitos mecanicamente. Perde-se a profundidade, banaliza-se o real significado. E começamos a achar que já entendemos lições que na realidade ainda não foram compreendidas.


Mas a vida mostra a todo o momento se algo ainda não está resolvido. Se as situações desafiadoras continuam se manifestando, é porque ainda há o que ser aprendido. Ainda existem sombras a serem descobertas e reveladas. Porque quando a luz se manifesta cessa o sofrimento. Faz-se o entendimento e instala-se a paz.

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